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A cama ainda estava desfeita. Ou melhor, o colchão que tinha há dois meses poisado no chão, do que um dia viria a ser a sala, ainda tinha os lençóis e o cobertor amarrotados. Uma cama desfeita no chão da sala…
Sentada de frente para a janela, estava eu, a segurar uma chávena de café frio. Lá fora, um céu encoberto e cinzento pairava sobre tudo. Tinha uma vontade irracional de fumar, mas tentava lembrar-me de que ontem disser que seria o meu último dia como fumadora. Talvez estivesse a mentir. Ou, então pudesse fingir que não me lembrava. Seria apenas mais uma coisa a esquecer.
O chão estava gelado e as pernas, cruzadas, estavam a ficar doridas poe estarem tanto tempo na mesma posição. Queria acordar. Mexer-me. Comprar móveis. Encher a casa. Comprar uma cadeira, talvez. Decerto seria mais confortável que o chão… Mas, parecia estar pregada ao chão. Há dois meses que era assim.
No final do diário encontrei um par de páginas em branco.
Procurei uma caneta na mala que tinha a meus pés. Sem sucesso, despejei todo o seu conteúdo, sem cerimónias, pelo chão. Vasculhei pelo monte de tralhas e peguei na caneta e nos cigarros.
Tentei não pensar antes de prender o cigarro entre os dentes. Não procurei o isqueiro, por enquanto não precisava de o acender.
Fumar podia ser o expoente máximo de quem espera, mas, sabia que, mal acendesse o cigarro perceberia que a minha espera era demasiado grande para morrer ás mãos do tabaco.
Segurei a caneta entre os dedos. Era pesada. Estranha, ali a pender-me da mão. Fi-la pairar sibe o papel branco.
Suspirei.
Deixei a caneta deslizar. Raiva. Não letras. Rabiscos. Rabiscos fundos e duros como a espera.
Sentei-me à secretária. Computador à minha frente. Para lá da janela vejo as nuvens caminharem na mesma direção, de forma apressada. Vi-as passarem de algodão fofo e imaculadamente branco a negro.
A chuva vai chegar. Em breve. Ou talvez seja falso alarme.
Poiso as mãos sob o teclado. Estou a escrever um livro.
Sinto um arrepio e não é do frio que agora começa a entrar pela fenda da janela aberta. Não é. É outra coisa. É deste sonha de dia. É. É isto: os dedos sob o teclado.
Senti-me amada, era uma sensação quente, nova, para aquele corpo esquecido.
Nuno estudava a minha expressão sorridente e calada, decerto surpreendido pelo meu silêncio, ou então mantinha-se também ele em silêncio porque me percebia. Não sabia como, mas ele, quase sempre, me percebia. Aceitação. Esta também era uma sensação nova.
Sentia uma adrenalina nova espalhar-se dentro de mim. Ia finalmente começar a viver. Tinha vontade de sair de casa, ver a cidade, as casas dos outros, procurar coisas que os meus olhos jamais tinham visto. Conhecer pessoas, novas histórias. Novas chuvas e ventos, quem sabe sóis. Ver flores nascer, rios. O mar. Ver tudo, ver tudo o que o mundo tinha para mostrar naquela noite.
Mas, por agora, ia começar por jantar.
Lembro-me de ser tarde.
Mas, depois, estupidamente, olhei-o nos olhos, e o tempo deixou de ser relevante.
É cedo, pensei. Era difícil pensar quando todo o conteúdo do meu cérebro era gelatinoso, fugidio.
Vi-o dar um passo em frente - aquele derradeiro passo que teimava em manter-nos afastados. Os seus, braços longos e gelados, rodearam-me a cintura e senti-me pequena.
Nuno respirou fundo. Tinha os olhos num tom claro de verde. Nunca os tinha visto assim., ou, talvez, nunca o tivesse visto de tão perto. Nos seus lábios formou-se um sorriso.
Sorri também. Ali, naquele ninho que ele formara em meu redor, não precisava de ser forte. Podia ser frágil. E, talvez, de quando em vez, devesse ser assim - frágil.
Nuno aproximou-se mais de mim, e, esqueci todas as minhas conjeturas quando uniu os seus lábios aos meus. Outra vez. Pela primeira vez sem arrependimento.
Ando a trabalhar no mesmo projeto há bastante tempo. Muitos sóis e luas ali escritos, bem escritos, esquecidos, revoltas, opiniões e erros.
Já desisti mais do que devia. Já o deixei só, ali, documento por abrir, bloco de notas a um canto.
Precisei de muitos sonos para refletir sobre quem queria ser quando me lessem. Nunca quis escrever de forma frágil, nunca quis ser frágil quando escrevo. Quero sempre ser forte, muito forte. A escrita põe-me a nu. Expõem-me muito, talvez mais do que, às vezes, me encontro preparada ou vaticino. E, mesmo nua em palavras quero ser forte.
Nunca quis escrever sobre personagens simples. Por isso, muitas vezes tive de as deixar sós, para as fazer crescer. Hoje dei por mim a pensar que elas estão crescidas. Fiz personagens crescer. Cresci. Caminhei longos caminhos, de caderno debaixo do braço e crescemos. E não há nada melhor do que isto, há?
Mas, já era tarde demais. Ainda com as palavras presas nos lábios senti a mão gelada de Nuno em contacto com a minha cintura. Decerto, ao esticar os braços com tanta insistência a minha t-shirt tenha deixado exposta uma linha de pele, linha essa que agora estava em contacto com a mão de Nuno.
Senti um arrepio percorrer-me. Todo o meu corpo gelava e aquecia num movimento simultâneo. Era como se uma corrente elétrica fosse descarregada, ali, naquele ponto em que ele me tocava com a mão gelada. Ele tinha sempre as mãos geladas…
Tentei parecer normal. Que patetice a minha sentir-me desta forma sempre que, por circunstâncias completamente normais e isentas de premeditação, nos tocávamos. Este tipo de casualidades andava a arruinar o meu bom senso.
- Aqui tens – descolou o seu corpo do meu, entendendo os pratos na minha direção.
Demorei mais do que o tempo considerado normal a poisar os calcanhares no chão e rodar e descontrair o corpo. Depois, deixei os meus olhos repousarem tempo demais naquelas rodelas de caco grandes, verdes e brilhantes, que Nuno me tentava entregar.
- Obrigada – respondi. A minha voz saiu com um suspiro preso.
Virei-me de novo para a bancada da cozinha, fingindo, estupidamente, que as minhas mãos precisavam de ser lavadas.
Tinha de parar de me comportar como uma maluca. Melhor, tinha de parar de me sentir como uma criança apaixonada. Melhor ainda: tinha de parar de pensar que estava apaixonada por Nuno. Isso sim. E, depois deixar de ser maluca… isso sim…
Talvez eu não me quisesse lembrar. Talvez fosse melhor assim. E, talvez, o meu cérebro lento e preguiçoso o fosse afinal para me proteger de males maiores.
Era isso. Eu não ia saber nada sobre o meu passado e ia ser melhor assim. Ia. Tinha de ser…
Mas, se era melhor, porque razão, todas as noites, antes de adormecer, me sentia estupidamente vazia e rezava a um qualquer deus desconhecido para me devolver a minha vida? Essa que não valia a pena. Essa que, afinal, sempre fora minha. Essa - esta.
Não conseguia adormecer. As horas eram pesos que tinha atados às mãos.
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