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Cortei o cabelo e durmo de janela aberta.
Esta podia se a introdução de qualquer outra vida que não a minha. Acontece que o destino quis que esta me pertencesse.
Mudei - esta é a verdade nua, crua e assustadora.
Às vezes (ainda) não me reconheço. Não me acho no espelho ou nas sombras da parede. Não me vejo nas fotografias nem nos adjetivos.
Encontro-me, antes, cá dentro - ardendo, com sede, com fome. Ou, então, calada e pequena, amedrontada pela falta de cabelo e pelos ladrões que podem entrar-me pela janela aberta.
Tenho medo de me perder neste labirinto espelhado e sinuoso que sou. Medo de me levar de mim, de me esconder atrás de cabelos longos e janelas fechadas. Mas, também já houve um tempo em que não pintava as unhas, nem pintava os olhos. Houve tempos de tela branca, e de tela negra.
Às vezes tenho medo. E, depois, lembro-me que deixei de ter medo quando, de cabelo curto, abri a janela e adormeci.
A droga é uma merda. Não há outra maneira de pôr as coisas: a droga é mesmo uma merda. Não há sequer outra palavra a ser usada neste contexto. Dizer que droga é má não basta, dizer que é uma porcaria nunca será suficiente.
Lidei (e talvez ainda lide) com o drama da droga de perto. Sei o que faz, como faz e o que quer fazer.
Nunca se deixa de ser um dependente por se ter deixado a merda da droga. A droga apodera-se das pessoas, das famílias, vai ao cerne dos seres humanos e começa a cortar carne sã e necessária. Mata – a merda da droga mata mesmo. Mata mães, pais e filhos. Mata quem consome e quem vê o seu filho ser consumido por ela.
Não adianta dizermos que é só uma vez, que é só para experimentar: a merda está feita, e nós nela.
Por isso, não façam merda: afastem-se dela em passo de corrida. Sejam mais fortes e melhores que a merda da droga...
Porque não há outra palavra para descrever a droga. A droga é - mesmo -,uma merda.
A droga hoje levou mais, muitos mais. E levou também o Cory.
Quis pinta-la porque as cores lhe sabiam bem ao sol. Assim, tomadas aos raios do entardecer, assim com a brisa rebelde vinda do mar.
Agitavam-se-lhe os cabelos e as cores expoliam-lhe nas veias, pelos poros, em redor do coração.
Presa a preto e branco, queria pintar tudo o que os olhos viam. Só não sabia como pintar o que estava por detrás dos olhos.
Queria pintar a alma, mas ainda não sabia o caminho. Ainda não. Ainda não.
Ontem encontrei lá no trabalho a mãe de uma rapariga que andou comigo na escola. Algures no meio de uma troca de palavras rápida, perguntou-me “E os estudos?”.
Ora, respondi, claro está: “já os acabei”.
Com olhar assim para o triste, disse “ E o mestrado?”. Respondi, serena (ó que calma estava), “Sempre quis trabalhar na minha área primeiro antes de tirar o mestrado. Como ainda não trabalhei, estou aqui enquanto não arranjo nada na minha área.” (podia ter respondido “Estou a fazer dinheiro para ir ver o mundo”, mas, não ando por aí a contar os meus sonhos obscuros a pessoas que vejo uma vez de dez em dez anos).
Sorri-me de modo afetado, e mandou beijinhos à minha mãe. Agradeci, e ela apressou-se a ir embora.
Às vezes fico sem saber como reagir a estas perguntas. Há tantas ideias preconcebidas, tantos mitos... Tantas coisas que devemos ou não devemos fazer - leis que nos querem fazer cumprir.
Somos mais que um curso, mais que um nome. Somos um conjunto de coisas -a profissão é só mais uma delas.
Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro por que exatamente eu o disse, e com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva.
Não estou me referindo muito a escrever para jornal. Mas escrever aquilo que eventualmente pode se transformar num conto ou num romance. É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação.
Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.
Que pena que só sei escrever quando espontaneamente a “coisa” vem. Fico assim à mercê do tempo. E, entre um verdadeiro escrever e outro, podem-se passar anos. Lembro-me agora com saudade da dor de escrever livros.
Clarice Lispector
Tenho três escovas de dentes a uso, em casa. Uso as três – cada uma na sua vez, e acho isso normalíssimo…
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