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- Mas, vais ficar aí muito tempo? - perguntou ele.
Tinha o telefone em altifalante. Estava a pintar as unhas. Escuro. Sempre de escuro.
Olha em redor. As palavras dele ainda ecoam no quarto pequeno e pouco decorado.
Os seus olhos pousam por momentos nas duas plantas, estranhamente felizes e verdes, pousadas sobre um monte de livros por arrumar, ao lado da janela ainda aberta.
Pinta a unha do dedo mindinho com alguma surpreendente previsão enquanto respira fundo.
- Comprei duas plantas no domingo passado.
A frase respondia à pergunta. Achava ela.
- Não precisas de mentir - não era uma acusação. Mas, fe-la pensar que ele, decerto, não tinha percebido a resposta.
- Não estou a mentir. Comprei mesmo duas plantas - faz uma pausa para fechar o frasco pequenino de verniz - e, sabes que tenho que ir até ao fim. Onde quer que isso seja. Estou a aprender a confiar no processo... O que quer que isso seja.
Ele respirou fundo.
- Ok. Amanhã ligo-te.
Desligou sem esperar que ela lhe dissesse mais alguma coisa.
Ele não ligou. Ela não esperava que ele o fizesse. E estava tudo bem. Fazia parte do caminho. E, agora ela confiava no processo - o que quer que isso fosse.
A felicidade, descobriu, nunca ia ser um estado permanente. Não havia feliz para sempre, nem sempre feliz.
A felicidade vem em ondas; às vezes passamos por elas, outras mergulhamos, outras caímos nelas e a água entra-nos pelo nariz - e ninguém é feliz com água, mesmo que água feliz, a entrar pelo nariz (rima e é verdade).
A felicidade mais do que um estado, era uma interpretação de uma aula de surf que ela nunca teve - surf sem prancha num mar sempre cheio de ondas.
Não tenho estado em lado nenhum.
Vou, mas, fico sempre.
A cabeça pensa devagar para o coração não chegar a sentir nada demasiado depressa.
Aquece-me os pés, as mãos e a alma. Finge que não vamos a lado nenhum. Faz de conta que nada conta e que, no final de contas, não temos contas para acertar.
- Estás diferente.
Não era uma pergunta.
O carro foi parando gradualmente até chegar ao semáforo vermelho.
Era capaz de me apaixonar por ti, pensei.
É verdade. Não estou nada igual.
Há tantas vidas entre os dias que nos separaram.
Histórias inteiras cabem nesse fosso entre os nossos pés - e o nosso coração. Caminhos sem volta, estradas de alcatrão não de quilómetros, mas de anos luz.
Passados e futuros. Filhos e amores por nascer. Entre nós. Vidas dentro de vidas, vividas e por viver entre a vidas que vives e a vida que escolhi viver - sem ti.
São cartas de amor o que te escrevo quando me calo, nunca consentindo, e engulo as palavras que nunca havemos de viver quando te beijo a testa fria.
Quero fazer uma ou duas tatuagens. Três ou quatro loucuras.
Sair e não voltar quando peço para me esperarem.
Fingir que não me importo. Chorar por dentro e rir a gargalha por fora. Quero ter coragem quatro ou cinco dias. Para tropeçar seis ou sete vezes sem nunca achar que caí
Deixa-me dormir no teu colo.
Eu levo o cobertor. Traz só o regaço e tempo para me amares.
Eu levo o relógio. Pelo sim, pelo não. Quando for hora de acordar, como quem para o tempo, paramos o relógio e o mundo segue fora do teu colo e do meu sonho.
Tenho o corpo frio e a cabeça quente. As mãos geladas aguardam, vazias, o passar do tempo.
As folhas dançam com o vento e eu balanço os pés a procura de força.
Para andar. Para sair. Para ficar.
Para ir a procura.
As folhas beijam-se umas às outras, às turras e aos atropelos. Algumas tocam-me na pele desnuda e arrepiada. Não são, porém, beijos que me roubam, naquela rua ventosa. Beliscam-me a mão. Uivam, secas, nos meus ouvidos como quem me pergunta quando e porquê.
O tempo passa devegar e as horas passam depressa.
E, eu não passo, porque os pés frios não me levam mais além. Nem a lado nenhum.
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